Short Review: A Malvada (1950)

Filme antigo não significa filme clássico tampouco implica qualidade. Muitos roteiros e direções “preguiçosas” que assistimos hoje já existiam no início do século passado. Então, a apreciação de um filme se volta além da sua época, do tipo de câmera e cores empregadas.

A Malvada (título horroroso para ‘All About Eve‘ de 1950, dirigido por Joseph L. Mankiewicz) é um daqueles exemplos que coloca o cinema como um todo no seu lugar. Um filme em que é possível entender porque qualidade transcende época. Como toda obra depende dos gostos e histórias pessoais de quem a consome, errado é afirmar que alguém “deve ver tal filme“. No entanto, se errado não fosse, A Malvada certamente estaria nessa lista dos must-see da vida. E por quê? Porque, mesmo com famigeradas pausas e ritmo provenientes do cinema da década de 50, constrói uma obra prima onde todo o cast principal atua formidavelmente bem (em destaque Bette Davis) e porque tem no seu desenvolvimento, maturidade (e imaturidade) dos personagens nos seus diálogos algo que ainda se enxerga hoje, os mais primitivos desejos, da vaidade a cobiça, da ironia ao desespero de envelhecer sem deixar nenhum legado. Um filme para assistir sempre que possível.

 

A Forma da Água (2017) – Universal, atemporal

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Famigerada é a preferência e hábito do diretor Guillermo Del Toro em usar criaturas mágicas, não convencionais ou místicas fora de seu habitat, rodeadas por humanos. Independente da época da história são eles (humanos) em sua maioria, arrogantes, convencidos de sua superioridade e medrosos com o desconhecido. A Forma da Água (The Shape of Water), um dos favoritos aos prêmios da temporada é uma nova incursão do cineasta mexicano nesta temática e é, desde O Labirinto do Fauno, seu melhor trabalho.

Numa ambientação primordial dos primeiros anos da Guerra Fria – da guerra por conhecimento científico e militar entre Estados Unidos e União Soviética – com destaque a trilha sonora e principalmente ao melhor design de produção do ano, a criatura interpretada por Doug Jones encontra na personagem de Sally Hawkins a genuína expressão de bondade e solidão, combinação que resulta em amor, carnal e fraternal entre ambos.

Numa precipitada interpretação esta é uma sinopse comum a várias centenas de filmes; então, o que faz A Forma da Água se sobressair?  Os detalhes e a ironia, no passageiro com um bolo no ônibus, na forma como a rotina é filmada ou na recorrente gelatina verde; no roteiro de Del Toro que nos faz acreditar que a vida da personagem de Hawkins a conduziu para àquele momento e que ainda no meio disso fala de racismo e homofobia sutil e habilmente; e, claro, na atuação da protagonista, que sem dizer uma palavra converge em expressão e ações a transformação da timidez e solidão em aventura e felicidade. Uma história convencional no seu núcleo que se torna grande não pelos efeitos especiais ou por retratar amor a uma criatura marítima (afinal, a analogia óbvia é que deslocados da sociedade, todos podemos ser ela em algum momento da vida) mas sim pela habilidade em falar de temas simples e universais.

Star Wars VIII – (Não são) Os Últimos Jedi

*(COM SPOILERS SOBRE ACONTECIMENTOS DO FILME)

Disruptivo é uma palavra que, embora não seja habitualmente dita no português cotidiano aparece como mania de jornalistas e redatores que teimam em usa-la até a banalização de algo que, segundo o dicionário, deriva de “partir, despedaçar, rasgar, romper, destruir”, a ser usado para grandes mudanças. No entanto, falar de Star Wars em seu episódio VIII, “Os Últimos Jedi”, é obrigatoriamente associa-lo a uma grande mudança nos rumos da série de filmes.

Star Wars – Os Últimos Jedi é a continuação imediata de O Despertar da Força, seguindo mais uma vez a luta da Resistência comandada pela general Leia contra a Primeira Ordem de Snoke. Trocam-se os nomes dos grupos de poder (Aliança, Rebeldes, Império, República e tantos outros que já passaram pelos 7 filmes anteriores) mas a dinâmica ainda é a mesma: um pequeno mas valente grupo de pessoas lutando contra um poder ditatorial na galáxia. No entanto, nesta obra de 2017, dirigida pelo competente Rian Johnson (de Breaking Bad e Looper) o grupo dos mocinhos se reduz ao menor número de combatentes que já se viu em Star Wars e o lado sombrio, pela primeira vez, passa a ser liderado por um guerreiro Ex-Jedi, Kylo Ren que, numa cena surpreendente, mata o líder da Primeira Ordem. Começam aí as diferenças e os motivos para o episódio VIII ser um game changer.

No entanto, a mudança mais drástica na mitologia da série e que tem causado a revolta dos fãs de longa data dos filmes é a desmistificação dos Jedi. Através das falas de Luke Skywalker (Mark Hamil em sua melhor atuação em Star Wars) somos convidados a enxergar melhor a contribuição dos Jedis ao longo da história: praticamente nula. Uma Ordem vaidosa pelo poder da Força que esteve sempre além dos interesses da população e, quando lutou por liberdade foi para sua auto preservação – que se não falhou, chegou muito perto pois apenas Luke remanesceu. Além disso, a descoberta mais impactante e que alimentava teorias em fóruns e blogs foi a da real descendência de Rey: muito diferente do que se romantizava Rey não é filha de Luke ou Leia ou nenhum personagem heroico dos filmes, e sim de pessoas “comuns” e pobres que a venderam como mercadoria ainda na infância.

Uma das maiores místicas de Star Wars, a descendência Skywalker (Anakyn, Vader, Luke, Leia) como fonte de poder está desfeita. Tão importante é esta abordagem para seus realizadores que a cena final chega a ser redundante no tema ao mostrar uma criança qualquer num planeta desconhecido com indícios do poder da Força. Ocorre que o Último Jedi – como conhecíamos a Ordem – foi Luke, mas os Jedis ainda serão a força motriz da liberdade, porém vindos de classes sociais e locais distintos da galáxia, assim como Rey.

Fundamental também na construção deste novo capítulo é o personagem de Finn, que com bons diálogos e atuação de John Boyega, confirma um senso de heroísmo aliado ao humor e carisma diferentes de Han Solo (Harison Ford) mas igualmente importante para que o filme seja um bom entretenimento. Rian Johnson acerta também nos elementos de humor, vindos especialmente das criaturas da ilha onde Luke se refugiou e cria, nos porgs, por exemplo, tudo que George Lucas falhou com Jar Jar Banks. Outro ponto a se considerar no trabalho de Johnson é a preocupação estética: se em O Despertar da Força JJ Abrams preocupou-se mais em destacar o clima de ação e aventura em cenas de perseguição e fugas no espaço, Johnson dá atenção especial a montagem, como nas cenas que telepaticamente Kylo Ren e Rey conversam ou no design de produção, exemplificado pelo perfeccionismo da batalha nos campos de gelo e sal em que os veículos e armas deixam no seu rastro um impressionante mosaico vermelho no terreno.

O último e derradeiro elemento desta obra disruptiva é o fim da trilogia original (episódios IV, V e VI) nesta nova, marcado pela morte de Luke e Leia, esta última a ser antecipada devido ao falecimento da atriz Carrie Fischer em 2016. Ainda que Luke e Leia apareçam em flashes como Yoda neste episódio VIII, Star Wars não é mais uma terra dos Skywalker antigos ou dos egoístas Jedis de outra época ou das ações militares pela busca de poder sem considerar diretamente o impacto às pessoas comuns daquele mundo. É com essa mudança que Star Wars VIII pode ter desagradado fãs antigos mas ganhará as futuras gerações e permitirá a Disney a realização de mais episódios da saga.

Trainspotting 2 (2017) – Quando a mesma fórmula não garante os mesmos resultados

 

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O mundo mudou em 20 anos. Não tanto quanto um dia imaginamos que duas décadas fariam de diferença ao mundo e muito menos, nem perto do que 20 anos representam na vida da Terra ou nos hábitos primitivos da nossa espécie – alguns, mesmo depois de milênios, continuam praticamente inalterados. Mas, de certa forma, mudou como sempre muda: com pequenos avanços tecnológicos e, principalmente, com as pessoas envelhecendo e o eterno ciclo de quem era jovem ficando velho e esta mudança natural trazendo momentos de nostalgia e arrependimentos.

É exatamente neste contexto que a sequência do Trainspotting de 1996 chegou aos cinemas neste ano. Trazendo seu núcleo principal de protagonistas (Ewan McGregor, Robert Carlyle, Ewen Bremner e Jonny Lee Miller) novamente na mesma Escócia do filme original e sob a mesma direção de Danny Boyle, assistimos em 2 horas uma ode à nostalgia da juventude do quarteto. Todos envelheceram e suas escolhas da juventude ainda repercutem no presente. Com uma série de referências ao filme de 96 em diálogos, conflitos ou rimas estéticas, está aí o primeiro ponto crucial do filme: se você decidiu assisti-lo sem conhecer o Trainspotting original provavelmente entenderá pouco da história e com grandes chances de sequer terminar de assistir este. O roteiro passa a ser vinculado a história original e praticamente tudo orbita em torno da decisão do personagem de Ewan McGregor de fugir com a parte dos seus amigos do dinheiro que eles roubam.

Mas este mote não é o problema do filme, afinal, grandes westerns foram construídos baseados na premissa de uma vingança oriunda de trapaças com dinheiro. Ocorre é que fora isso o filme não consegue desenvolver uma história convincente e a partir de certo ponto, parece que até os atores reconhecem isso e estão tão impacientes quanto o espectador para que o filme termine. Existe uma tentativa de história neste roteiro, que é a da reunião dos 3 (McGregor, Bremner e Miller) para construir e administrar um bordel, mas da forma como isso é conduzido em nenhum momento acreditamos que isso possa acontecer ou que tenha relevância. Além disso, a psicopatia do personagem de Robert Carlyle (Begbie) o faz ser temido pelos demais 3 parceiros e velhos amigos, mas embora ela quase chegue a níveis Alex DeLarge em Laranja Mecânica, é pouco verossímil que três homens mais novos, unidos, de bom porte físico e pouco a perder na vida, se esquivem tão pateticamente dele.

Embora estes pontos sejam cruciais e, na minha opinião, definidores de que seria melhor ter ficado com a lembrança de Ewan McGregor numa overdose de heroína ao som de Lou Reed (Perfect Day), o filme de 2017 tem alguns bons momentos. Entre eles, a melhor cena do filme, a explicação sincera do que é o Choose Life, que você pode ver no vídeo abaixo. No fim, temos um filme de oscilações entre alguns bons e sarcásticos momentos num emaranhado de referências ao filme de 1996 e uma história fraca que se preocupa em dar um tom exagerado no caráter determinista a vida, pois mesmo que o presente seja uma inevitável consequência dos nossos atos passados, viver num ritmo de c’est la vie, é um belo desperdício de tempo.

 

 

O Sal da Terra (2014)

Se uma boa redação precisa de um excelente título, um bom filme também começa a ter sua qualidade apreciada já no título. Quando o título de um filme resume com excepcional habilidade as suas ideias centrais é um belo indício que, ao menos, ele tem coesão. E esta qualidade é uma das predominantes em O Sal da Terra, documentário de 2014 que apresenta a vida do fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado através da sua obra.

Dirigido e produzido pelo cineasta alemão Wim Wenders em parceria com Juliano Salgado (filho de Sebastião), O Sal da Terra é um documentário (acertadamente indicado ao Oscar) que une as várias fases da carreira do famigerado protagonista através desta simples mas brilhante constatação: o que faz diferença para o mundo (o sal ou “tempero” dele) são – sempre foram e serão – as pessoas. Essa constatação, embora de uma obviedade gigante, através da utilização das fotos, resultado uma vida de expedições pela América Latina, Leste Europeu e África, entre outros, culmina na visualização das experiências do fotógrafo e vai além do que meros relatos escritos sobre a natureza humana nos 4 cantos da terra poderiam produzir.

Enquanto você lê este texto é perfeitamente provável que no planeta, por exemplo, existem pessoas experimentando suas maiores felicidades ou tristezas da vida, desempenhando rotinas ou hábitos que nunca vimos ou soubemos, ou com preocupações que para você (ou eu) não fazem sentido. Por mais polarizados e distintos que sejam nossos hábitos e locais por onde passamos, a vida ordinariamente nos limita a realidade que nos cerca (afinal, recursos como o tempo são finitos e a imprevisibilidade da raça humana, não), e com isso acabamos tendo a noção e percepção mais viva somente daquilo que faz parte da nossa realidade. São experiências como as de Salgado em O Sal da Terra, documentadas através da fotografia preto-e-branco, imparciais e impessoais, que servem de combustível para mostrar que o mundo sempre é maior do que o imaginávamos no instante anterior (apenas isto, sem o mérito de ser melhor ou pior, e toda a subjetividade carregada neste tipo de análise) .

(Melhor e mais prudente do que falar especificamente das obras de Sebastião Salgado é observá-las e, por isso, algumas estão na sequência abaixo neste post).

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Já Não Me Sinto em Casa Nesse Mundo (2017) – um filme independente para começar bem o ano

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Passada a corrida dos prêmios (Oscar, Globo de Ouro, prêmios dos críticos), 2017 começa a mostrar alguns bons exemplos de produções maduras e bem ajustadas. Já não me sinto em casa nesse mundo (I don’t feel at home in this world anymore) é um filme de 2017, dirigido por Macon Blair e exibido no Festival de Sundance em janeiro e rapidamente comprado e disponibilizado pela Netflix em seu catálogo mundial. Trata-se de um filme independente (leia-se aqui: baixo orçamento) mas habilmente produzido que, como sugere o título, mostra o desconforto da protagonista Ruth – vivendo nos dias atuais nos EUA – ao se deparar com a alienação e indiferença da população no cotidiano e após ter sua casa furtada. Nada mais é do que a sensação de “peixe vivendo fora d’água” tão recorrente atualmente.

Em seus primeiros atos vemos em Já Não me sinto… um drama de como é viver numa sociedade que vive no seu sistema quase robótico (comprar, comer, beber e não ligar para os outros – isso inclusive se aplica à Polícia) e temos um vislumbre de uma obra análoga a tantas outras que mostram a estranheza do nosso tempo (Tangerine ou Indomável Sonhadora foram alguns bons exemplos dos quais lembrei). Mas então, pouco a pouco são inseridos elementos de comédia, mas não uma comédia estilo “pastelão” feita para gargalhar, muito mais na mesma linha da comédia do humor negro e sútil que os irmãos Coen há tempos desenvolvem. Então, de repente, a metade final do filme transforma-se num belo exemplo de humor e consequências absurdas  a ações minimamente diferentes das habituais, reforçando muito um paralelo a Queime Depois De Ler (Burn After Reading).

Temos como resultado um filme que aparentemente traz uma premissa mas faz uma entrega totalmente diferente. Se deixarmos de lado essa consideração purista é fácil identificar que o filme tem uma base sólida de atuações (incluindo Elijah Wood) e uma história que sutilmente faz uma crítica a sociedade contemporânea no seu modo egoísta de agir mas de maneira mais contundente é um bom exemplo de entretenimento/comédia.

*Uma grande mensagem da história que ficou pairando na minha mente é a de que uma alteração no curso da rotina muda todo o futuro. Simples, porém nem sempre conseguimos aplicar a coisas que nos desagradam na vida, ou como diz o personagem de Kevin Spacey em House of Cards “se não gosta como a mesa está posta, vire a mesa”.

Lion: Uma jornada para casa (2016)

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É inútil discutir Lion: Uma Jornada Para Casa (2016, Lion) como um filme ou explorar seus aspectos de produção, direção, roteiro e atuações. É uma obra que trabalha na mediocridade nesses quesitos, isto é, nem se destaca nem fica devendo, parecendo um belo exemplar de um telefilme (filme feito para a TV) da HBO.

O que realmente importa neste filme é a sua ligação com o mundo real. Ao acreditarmos que se trata de uma história real (eu não pesquisei o quanto é realidade e o quanto foi “ficcionalizado” pelo diretor Garth Davis), de que o menino indiano que se perdeu aos 6 anos e 25 anos depois, morando num país diferente e com cultura totalmente distinta (Austrália) consegue refazer o caminho de casa para encontrar a mãe biológica precisamos parar de pensar ou criticar muito do filme. Esta capacidade extraordinária de o mundo produzir inúmeras histórias fantásticas diariamente é uma obra de arte tão fantástica que supera quaisquer filmes. Enfim, Lion é um filme que deve ser visto como uma ode não ao cinema, mas a imprevisibilidade que o mundo – na verdade, estar vivo – reserva a quem dele fez ou faz parte.

Um limite entre nós (Fences, 2016) – O grande teatro de Denzel Washington

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Ao contrário do que o título deste post pode sugerir, Um Limite Entre Nós (título original Fences) não é um filme de baixa qualidade. A caracterização desta obra me lembra outras adaptações cinematográficas de roteiros focados nos diálogos acima de tudo, tais como a obra prima de 2008 intitulada Dúvida (Doubt). Neste filme de 2016, e concorrente a muitas estatuetas do Oscar – incluindo a de melhor filme, Denzel Washington além de ser protagonista é o diretor e mente criativa da obra. Interpretando um trabalhador da companhia do lixo nos EUA pós Segunda Guerra Mundial ele faz par com a personagem de Viola Davis, sua esposa.

Em menos de 5 minutos de filme temos a certeza que a atuação de Denzel merece, no mínimo, uma indicação a melhor ator. Com naturalidade e desenvoltura de um ator extra classe ele mostra carisma a amabilidade invejáveis, que fazem o espectador querer conhecer melhor Troy Maxson, seu personagem. Aí a trajetória do filme começa a se justificar de uma forma muito inteligente. Ao longo do filme descobrimos que por trás do Denzel Washington das primeiras cenas temos um homem abandonado pela mãe e com pai abusivo, amargurado por não ter mais êxito profissional, com nostalgia da época em que era um destaque do baseball e lutando contra sua vida boêmia e infiel no matrimônio. Conforme essa caracterização vai se delineando o outro ponto forte do filme, Viola Davis, começa a aparecer e tal qual seu par em cena, a clamar por atenção. Inicialmente de aparência submissa, vemos que a força de vontade para permanecer naquele casamento, amando ao seu marido é gigante, assim como a atuação.

Enquanto Denzel entrega ao público uma de suas melhores interpretações da sua carreira, como diretor ele prefere delinear bem os limites da cenografia, as posições de cada ator no set e deixar que as atuações conduzam o resto. Praticamente o filme inteiro se concentra entre o cenário da sala de estar, cozinha e área de fundos da residência do casal. Por isso e pelos longos, mas belíssimos monólogos, temos a estrutura teatral da obra, digna de uma grande peça. Mas não está na técnica de cenografia ou atuações o mérito do filme. Elas são parte de um propósito maior e relativamente bem sucedido: humanizar a complexidade das ações do ser humano. O comportamento moral idealizado não existe e, atrás de cada sorriso ou traição sempre há uma história.

Moonlight: Sob a Luz do Luar (2016) – e da simplicidade e beleza

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Um review de Moonlight – Sob a Luz do Luar não precisa ser extenso. Não há de ser escrita uma tese acadêmica para falar do filme. Aqui a simplicidade do filme deve se traduzir em facilidade na análise. Barry Jenkins, o diretor, desenvolve uma obra sobre o protagonista Chiron, que abrange três fases bem distintas e explicitadas na tela do mesmo modo como Quentin Tarantino, por exemplo, costuma marcar seus filmes em capítulos: 1.a infância de Chiron, 2.sua adolescência e 3.a fase adulta, próximo aos 30 anos. Ambientado em Miami, Flórida, com enfoque às regiões/vizinhanças habitadas majoritariamente por negros vemos um Chiron desde pequeno perseguido pelos colegas de escola por não se ajustar ao mesmo comportamento deles. Quieto, tímido e gay é o alvo claro dos preconceitos dos demais meninos. Desamparado pela mãe, que apenas dá valor as drogas que consome, encontra proteção no casal vivido por Mahershala Ali e Janelle Monáe, que suprem a necessidade paterna e materna.

Mas conforme Chiron vai crescendo, assim ocorre com seus “amigos”, e o preconceito se intensifica assim como a sua timidez e introversão. O clímax dessa história são as agressões físicas sofridas por Chiron e, então, a sua vingança violenta. Depois disso, vemos ele já adulto em uma cidade diferente, com uma postura e aparência completamente inesperadas: traficando drogas, com hábitos que remetem ao personagem de Mahershala Ali visto no início do filme. Forjado no sentimento de exclusão e agressão da sociedade ele agora é superficialmente alguém que age com a mesma violência da qual sofreu, nem que para isso precise esconder quem de fato gostaria de ser. Cabe as cenas finais do filme, que oportuniza o encontro dele com seu amigo de infância e primeiro homem que beijou na vida, revelar que psicologicamente continua sendo mesmo Chiron criança e adolescente, com inúmeras inseguranças mas com a certeza de que seria melhor ostentar algo que não é do que voltar aos tempos sombrios vistos no início do filme.

Percebemos que a história tem uma simplicidade invejável e que nos fascina sem precisar explorar temas como a vinda de extraterrestres a Terra ou uma jornada heroica na 2ª Guerra Mundial ou ainda coreografias que param uma rodovia inteira em Los Angeles – apenas para citar algumas tramas de outros concorrentes ao Oscar neste ano. Por que isso ocorre? Cabe aí o mérito a Jenkins, que recorre a simplicidade na direção aliada a refinamento nas tomadas calmas, bem sincronizadas com a trilha e edição. Nada é apressado nas cenas filmadas e agilidade fica por conta da montagem que faz o filme fluir sem deixar ninguém com sono. Ainda sobre o modo como Jenkins escolhe rodar seu filme, nas cenas da infância de Chiron (em especial na qual ele aprende a nadar – imagem deste post) temos uma beleza única e alguns paralelos com a direção de Terrence Malick em A Árvore da Vida.

Ponto fundamental para análise é o tema que une os capítulos do filme: o preconceito de gênero e, sob esse aspecto, Jenkins opta acertadamente em trata-lo de forma aberta, direta mas sem grandes sensacionalismos, como em Estrelas Além do Tempo (Hidden Figures), por exemplo. No entanto, ao lembrar de Sobre Meninos e Lobos (Mystic River) chego a conclusão de que prefiro o modo de montagem e direção do filme de Clint Eastwood de 2003, que desenvolve com mais tempo de tela todas as implicações que um trauma na infância gera no futuro. E é por isso, que na minha opinião, Moonlight é um grande filme, que conquista pelo modo direto mas belo de contar uma história comum (“comum” no sentido que pode se encaixar em diversos locais do mundo e épocas) mas que na preocupação de desenvolver uma história de tantos acontecimentos e de arco dramático tão longo deixa de oferecer pistas e subsídios para que o espectador formule interpretações e possa se envolver de uma forma mais profunda que perdure mesmo após os créditos finais.

Até o Último Homem (Hacksaw Ridge, 2016)

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Princípios básicos para uma crítica sobre Até o Último Homem: a análise é sobre o filme, em seus 139 minutos e nunca diretamente sobre as declarações, polêmicas e personalidade de Mel Gibson, seu diretor. Parece óbvio, mas até mesmo grandes veículos de comunicação fazem questão de falar de tudo menos sobre cinema.

Dito isso, Até o Último Homem (Hacksaw Ridge) é uma das melhores coisas nessa chamada “Corrida do Ouro”, expressão em referência aos prêmios da temporada (Oscar, PGA, DGA, associações de críticos, entre outras). O drama protagonizado por Andrew Garfield em, enfim, uma grande atuação desde A Rede Social, é bem dividido em 3 atos principais: a infância e adolescência do jovem Desmond Doss na Virginia da década de 30, o alistamento militar e o treinamento de guerra em solo norte-americano, e as batalhas da Segunda Guerra Mundial no Japão, mais especificamente na Serra de Hacksaw, que dá título ao filme. Esta estrutura muito bem montada e ritmada por Gibson e seus montadores me lembrou, com grande alegria, de Nascido para Matar (Full Metal Jacket) o clássico de guerra de Kubrik.

O mote do filme, que une suas 3 partes é a convicção pacifista de Desmond Doss, que recusa praticar a violência. Então, já no primeiro ato do filme descobrimos as motivações para esse comportamento moral do personagem vivido por Garfield. Mas, além disso, merece  destaque o romance do protagonista com a personagem de Teresa Palmer, que em poucos minutos de diálogos traz encantamento maior que a trama romântica inteira de La La Land – Cantando Estações.

O grande conflito do filme começa com a recusa de Desmond em portar/manusear qualquer arma em frente a todo batalhão de infantaria. O ambiente fortemente hierárquico do Exército e extremamente nervoso após o ataque a Pearl Harbor pressiona e pune Desmond a ponto de quase o fazer desistir da sua vontade de ir à guerra para ajudar, nunca para matar. Nesse arco dramático vemos dois atores de carreiras completamente distintas com atuações muito boas: Vince Vaughn aproveitando sua habilidade em comédia para interpretar o sargento responsável pela turma de recrutas e o retorno de Hugo Weaving a um papel de destaque.

Vencidas as barreiras de crenças e fé, somos transportados ao Japão e é seguro afirmar que já nos primeiros momentos de batalha temos as melhores cenas de guerra desde O Resgate do Soldado Ryan. As tomadas são ágeis, a edição de som e mixagem são impecáveis e Mel Gibson não tem receio em mostrar cenas mais sórdidas que uma guerra causa sobre as almas, vidas e corpos (em geral, dilacerados). Assim, o filme que começa calmo sob a tranquilidade de um dia de verão na Virginia vai crescendo em ambição com uma força carismática de Andrew Garfield e firmeza na direção de Mel Gibson até seus momentos finais, o êxtase da destruição, sombria e nefasta, mas real.

Até o Último Homem é apontado por muitos como uma obra de demagogia e acusado por romantizar o campo de batalha numa guerra. Discordo parcialmente dessas ponderações, pois a história de Desmond Doss, embora com cara de um belo trabalho de ficção é fidedigna, sendo ele, o soldado na vida real, responsável por salvar mais de 70 outros soldados e o primeiro pacifista a ganhar a Medalha de Honra do governo dos EUA, maior condecoração militar do país. No entanto, a atmosfera envolvente da aura de bom moço de Desmond, dada graças ao modo gentil, calmo e risonho de Garfield realmente contribui para que os horrores da guerra sejam minimizados nas cenas que Desmond ajuda seus amigos. Por fim, este detalhe não apaga todos os méritos deste que, para mim, é um dos melhores filmes do ano e, sem dúvida, da temática bélica.